sábado, 25 de agosto de 2012

ALTERNATIVAS À ECONOMIA FINANCEIRA, OU, EM BUSCA DE PARADIGMAS PERDIDOS

“Esse porco filho da puta pode, por exemplo, fazer com que a tua produção de trigo se valorize ou desvalorize dois anos antes de sequer ser semeada. Na verdade, pode comprar-te, sem que tu saibas da operação, uma colheita inexistente e vendê-la a um terceiro, que a venderá a um quarto e este a um quinto, e pode conseguir, de acordo com os seus interesses, que durante esse processo delirante o preço desse trigo quimérico dispare ou se afunde sem que tu ganhes mais caso suba, apesar de te deixar na merda se descer.“
 
Assim se refere o articulista do El Pais Juan José Millás à economia financeira, num texto que incendiou as redes sociais espanholas e que a “Dinheiro Vivo”acaba de traduzir e publicar (ver artigo completo).
As reações dos leitores portugueses não tardaram, umas emotivamente a favor e outras cegamente contra. Vejamos o que se diz: “Há um bom motivo pelo qual se compram futuros, e vem exactamente do exemplo da produção de trigo: o agricultor antes de colher a plantação já tem necessidade de alimentar a família, portanto tem de conseguir vende-la antes de a ter colhido.” Outro leitor pergunta: “A verdadeira questão: qual é a solução? Qual o melhor sistema a seguir ao melhor por defeito? Já não vale reclamar”.
Ao longo da História foi sempre desta forma que os donos dos sistemas dominantes afirmaram o seu poder. É célebre o discurso das mãos e do estômago com que Menénio Agripa procurou convencer a plebe romana. Podemos imaginar semelhante argumentação num industrial de Manchester oitocentista falando aos seus operários quase mortos de fome: “agora que fostes expulsos dos vossos campos, só eu vos posso garantir que a fome não seja completa”. Ou dum senhor feudal: “se eu não vos organizo quem vos vai defender dos inimigos que nos podem atacar?” No fundo, o argumento foi e é sempre o mesmo: “podemos não ser bons mas não tendes alternativa”. A História sempre se encarregou de lhes tirar razão: tal como nas pessoas, não há sistemas insubstituíveis.
Ninguém se lembrou de dizer ao Senhor feudal que se poderiam organizar num sistema democrático, assim como ninguém disse a Agripa que estava a meter as mãos pelos estômago porque a sociedade poderia ser mecânica e não orgânica, para usar os conceitos de Durkheim.
Hoje, fazem-nos crer que não há alternativa a esta economia financeira que, dominando a produtiva, nos domina a todos. Apostam no medo, no horror ao vácuo que se produz ante a possibilidade de, a este mal, se suceder mal pior que é o vazio. Procura-se até confundir Ocidente com capitalismo, como se o fim deste fosse o fim daquele; uma óbvia mentira se considerarmos que temos séculos de cultura ocidental e apenas 200 anos de capitalismo como sistema dominante.
Mas sim, a pergunta é essa mesma: o agricultor tem de comer antes de colher o trigo e pode morrer de fome se a colheita for má. Que alternativa a uma economia financeira que é também uma almofada (ainda que de cimento) para este risco?
As respostas são fáceis. Se não as encontramos é tão só porque costumamos sofrer de dois centripetismos: o cronológico e o cultural. O primeiro apenas nos permite ver o nosso tempo, o segundo impede-nos de buscar soluções fora da nossa cultura.
 
O que nos ensina cronos?
Ensina-nos que a humanidade sempre foi capaz de encontrar soluções. Já aqui abordei este tema (A Grande Apropriação,ou a Falácia do Estado Social): perante a desproteção social completa em que se encontravam os primeiros operários do Sec XIX, estes souberam aproveitar a tradição comunitária que traziam do mundo rural e auto-organizaram-se em sociedades mutualistas, capazes de lhes garantir alguma estabilidade.
Em Inglaterra, por exemplo, as Friendly Societies contavam com 1 milhão de sócios em 1850 e 4 milhões em 1872. Em 1913, na Alemanha, 16 milhões de operários estavam associados em diversas caixas de invalidez e velhice (Y. Lequin). Igualmente fruto da auto-organização daquilo a que hoje chamaríamos “sociedade civil”, foram surgindo inúmeras cooperativas de consumo que pretendiam salvaguardar produtores e consumidores dos ataques especulativos e garantir, assim, um controlo sobre o preço dos bens de consumo. Por volta de 1860, esta tendência alargou-se ao crédito com o aparecimento de associações de crédito mútuo, com origem na Alemanha.
É deste movimento e do seu exemplo que mais tarde o Estado se aproveitará para começar a criar aquilo em que nos nossos dias se tornou a mastodôntica burocracia social (C Ward).
Se as coisas tivessem seguido o seu rumo natural, a segurança social estaria agora a ser gerido por pequenas e médias organizações mutualistas de âmbito territorial ou social, com uma profunda ligação aos seus utentes, porque por eles criadas, geridas e controladas. Organizações que, tanto pela sua dimensão como pela proximidade ao utilizador, teriam, como tiveram no passado, uma estrutura burocrática muito leve.
Mas, é claro, com esta fórmula não se teria dado emprego a uma elite político-partidária cada vez mais ávida e, na fase em que estamos, não se encontrariam argumentos para que, por ingovernabilidade do sistema, o Estado pudesse entregar de mão beijada a nossa assistência social a grupos económicos cujos cadastros não nos deveriam deixar nada descansados.
 
O que nos ensinam outras culturas?
Socorro-me dum só exemplo: as culturas andinas pré-hispânicas, normalmente englobadas no conceito de Império Inca. Antes da chegada dos espanhóis em 1533, esta região era talvez a mais avançada do mundo dos pontos de vista social, alimentar e, arriscaria até, científico.
Apenas num ou dois aspetos estavam atrás da Europa de então: o primeiro e central foi o militar, o segundo, talvez o da filosofia/teologia. Foi com o primeiro que foram dominados e foi com o segundo que foram colonizados. Isto não obstante os seus claros avanços nas demais áreas, bastando recordar o que aconteceu à demografia europeia quando aqui chegaram as espécies agrícolas desenvolvidas e melhoradas no mundo andino.
A economia dos incas era profundamente rural e obviamente que padecia dos riscos naturais inerentes: secas, cheias, desastres… e no entanto não havia fome nem subnutrição. Porquê? Primeiro porque o usufruto da terra era privado mas a posse era comunitária, ou seja, quando alguém morria a terra voltava à comunidade e quando alguém chegava à idade de trabalhar a comunidade entregava-lhe um campo para que dele usufruisse. Com isto, garantiam um elevado nível de igualdade social (ainda que no âmbito duma sociedade que não era igualitarista). Garantiam também que heranças sucessivamente divididas não depauperassem o ciclo geracional e, já agora, que a transação não resultasse em bolhas especulativas que levassem alguns a destruir a riqueza de quase todos.
O melhor que o Ocidente desse tempo conseguiu para responder a estes riscos foi a injustiça do morgadio e dos bens de alma… julgo que estamos conversados.
Mas o que mais me interessa enfocar é o sistema de segurança alimentar mútua: cada família entregava uma parte da sua produção para celeiros comuns que asseguravam que uma boa colheita numa região pudesse acudir a uma má colheita noutra… ou seja, já nesse tempo garantiam a segurança alimentar sem precisarem de se submeter à caridade ou de se sujeitarem a essa almofada de cimento que é o mercado de futuros.
 
Uma alternativa à economia financeira.
Em conclusão, é obviamente falacioso o argumento daqueles que dizem que não temos alternativa à financiarização da economia e que este modelo de capitalismo é o melhor dos mundos possíveis. Todos os regímenes dominantes argumentaram que estavam a oferecer esse tal melhor mundo e todos caíram.
A base da economia tem de voltar a ser a produção e, se perdermos a cegueira que nos impede de olhar para a História e para outras culturas, há claras alternativas ao modelo em que estamos a viver. Basta que pensemos mais em cooperação e menos em competição, mais em solidariedade e menos em caridade, mais em mutualismo e menos em assistência. Em suma, o segredo está em usarmos a entreajuda para que o risco deixe de ser um produto transacionado, um produto que depaupera muitos e enriquece alguns.
Só não vê quem não quer… ou quem ganha com isso.
 
Luís Novais

 

  

 

 

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