domingo, 7 de fevereiro de 2016

HISTÓRIA E MUDANÇA EM TEMPOS DE CRISE



Se chegarmos ao fim com um disputa eleitoral entre Trump e Sanders, teremos um grande sinal de que também nos Estados Unidos a época dos consensos está a chegar ao fim. Ainda que isso não aconteça, o simples facto dessa possibilidade ser considerada, já é uma considerável mudança e um reflexo claro de que há um abalo na estabilidade do sistema.

O dealbar dos modelos económicos e sociais traz consigo o regresso aos grandes debates políticos, com consequências de cronologia variável. O insustentável peso social duma economia de base colonialista, deu a primeira vida concreta ao debate iluminista, conduzindo à independência dos Estados Unidos da América e ao seu modelo constitucional. Pouco depois, a constatação de que um Estado cada vez maior precisava de um controlo que o regrasse, decapitou a monarquia absoluta em França. A incapacidade da coroa espanhola para assegurar a colonização das suas possessões americanas, levou o colonialismo a reinventar-se num modelo independentista. Em Portugal, a falência do modelo regenerador assente em obras internas com endividamento externo, desequilibrou as contas e, com elas, os consensos sociais, terminando na lamentável morte de D. Carlos e numa república que nunca chegou a alcançar a estável fase dos consensos. 

O medo da liberdade que Erich Fromm teorizou, é uma espécie de subproduto de um medo talvez ainda maior: o horror ao vazio.  A espécie gosta de sentir segurança e é por isso que, seja por partilha coletiva, nas sociedades mais preparadas, seja por caudilhismo, nas impreparadas, prefere a certeza do mal que sofre, do que a incerteza de caminhos por desbravar. 

É esta tendência que leva os sistemas a tender ao equilíbrio e as democracias a ser governadas ao centro. Porém há fraturas históricas, e geralmente ocorrem quando os modelos vigentes estão sob um cataclismo tal, que se generaliza a convicção de que é muito mais perigoso ficar do que aventurar. Esses são os momentos em que as placas tectónicas sociais despertam para avanços que podem terminar em abalos historicamente assinaláveis.

A mundialização do sistema capitalista, que hoje é dominante em quase todas as economias, trouxe consigo uma grande falta de coesão ao próprio modelo. Por outras palavras, nenhum sistema vive sem a moral que lhe é própria e nenhuma moral resiste à grande expansão do sistema que suporta. Foi o que aconteceu, por exemplo, ao cristianismo, depois que deixou de ser a religião de alguns pobres e escravos de Roma, e passou a teologia oficial: Foi tomado de assalto pelos poderes fácticos e, digo-o com alguma liberdade conceptual, rendeu-se ao pragmatismo.

O capitalismo globalizado impôs-se de tal forma e conseguiu atingir uma dimensão tão grande que, hoje, sofre de elefantíase. Ler o que Max Weber escrevia em 1904 sobre a ética protestante e o espírito do capitalismo, ao mesmo tempo que hoje se testemunha aquilo que este sistema económico se tornou, é falar de duas realidades completamente distintas. Onde Weber via probidade, espírito de sacrifício, pensamento de longo prazo, hoje vê-se sobretudo ambição desmedida, ganância e imediatismo.

 A esta decadência moral, soma-se a do próprio iluminismo. A crença na Razão, no método científico como liturgia da verdade, na honestidade intelectual, é todo um idealismo que fez da universidade numa espécie de templo da modernidade e transformou os cientistas em sacerdotes, com hierarquias e ritos que os transformam em metáforas perfeitas duma Igreja. 

Rousseau, Montesquieu, Diderot ou Voltaire, corariam de vergonha se chegassem aos nossos dias e vissem “Inside Job”, o célebre documentário de Charles Ferguson sobre a crise financeira de 2008, onde se põe a nu a forma como relações perigosas entre as universidades e o sistema financeiro deturparam o conceito de ciência.

À força da generalidade da população ter sentido na carne os efeitos nefastos do modelo económico vigente, nesta última década generalizou-se uma tripla constatação: primeiro, sobre o real funcionamento do sistema, depois sobre a alquimia da verdade em narração e, por último, sobre o excessivo peso da comunicação frente ao da ciência. Aquilo que antes eram apenas os alertas de alguns excêntricos, são hoje conhecimentos comuns e consensuais nas conversas de café. 

Estaremos a entrar numa dessas fases em que se gera a convicção de que ficar como se está é mais perigoso do que aventurar um novo caminho?

Há dois fenómenos que me parecem anunciar que sim. Um deles é o regresso a uma ética da simplicidade que, por exemplo, fica patente na popularidade mundial do ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, ao volante do seu Volkswagen carocha avaliado em menos de 3.000 euros, que ele próprio conduzia da pequena quinta em que vive para o palácio presidencial. O modo de vida austero de outro  herói da atualidade, o papa Francisco, é mais um sinal duma possível nova era, que, diga-se en passant, Marcelo rebelo de Sousa parece ter interpretado muito bem na forma como montou a sua campanha eleitoral.

Outro dos fenómenos que aponta no mesmo sentido, é o andamento das eleições primárias nos Estados Unidos, com os candidatos de centro, Hillary Clinton e Marco Rubio, abalados por candidaturas mais ideológicas e com opções alternativas: Trump e Ted Cruz, nos republicanos, e Sanders nos Democratas.

Se chegarmos ao fim com um disputa eleitoral entre Trump e Sanders, teremos um grande sinal de que também nos Estados Unidos a época dos consensos está a chegar ao fim. Ainda que isso não aconteça, o simples facto dessa possibilidade ser considerada, já é uma considerável mudança e um reflexo claro de que há um abalo na estabilidade do sistema.

Olhando em redor, percebe-se que vivemos tempos de desconforto. Talvez o mundo ainda não saiba para onde quer mudar, mas a necessidade de mudança já abala o conservadorismo e motiva o aparecimento de propostas alternativas. Depois da tecnocracia dita pragmática, que tem por único princípio a gestão eficaz dum modelo que não questiona, estamos a regressar às ideias e às ideologias. São tempos de esperança, sim, porque “navegar é preciso”, mas também de receio: a ideia é sublime e o sublime sempre foi o principal justificador do sangue e do crime.



Luís Novais





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