segunda-feira, 17 de outubro de 2016

QUANDO PARIMOS A ARTE


Ser e horror cruzaram-se há 20.000 anos: Nasceu a arte.

A arte cria-nos a ilusão de que é possível controlar o incontrolável mundo. Ao artista, transforma-o numa metáfora de Deus. Ao público alimenta-lhe a ideia de que a vida não é tão horrivelmente indeterminada, oferece-lhe a salvadora convicção de que o ser “nós” pode ser fonte de criação e domínio dos elementos, ainda que por interposto criador, mas humano como os demais.

Transformados em metáforas de Deus ou de deuses, quando criamos aplacamos a angústia da existência consciente. Fazemos mundos sonhados e por nós delimitados, superando a opressão do caos.

As artes plásticas, a literatura, quer na prosa quer na poesia, oferecem a mesma sensação do ser criador que se liberta dum mundo insuportavelmente criado, insuportavelmente imprevisto e insuportavelmente povoado de “outros”.

Música e dança seriam também uma resposta a esta insustentabilidade, acrescentando-lhe a integração. Quando ouvimos ritmos que identificamos e que escutamos repetidamente, o futuro torna-se previsível, ao mesmo tempo que nos incorporamos na comunidade dos que escutam a mesma música, dos que dançam a mesma cadência.

Se nada é mais humano do que a consciência individual de sê-lo, se essa é a nossa grandeza e o nosso drama, então nada é mais humano do que a arte, umas vezes de mão dada com essa outra criação humana, a religião, outras vezes em acesa competição.

Esta é uma perspetiva artística da arte e portanto nada científica. Mas a mesma arte nasce dum sopro inspirador e é desse sopro que se se faz viva. Talvez por isso só uma intuição possa explica-la, nem sequer uma filosofia.

Fecho os olhos e imagino o mundo tal qual ele foi para os caçadores recolectores que há 20.000 anos e pela primeira vez pintaram paredes em cavernas escuras, esses que também imaginaram e fizeram pequenas grandes estatuetas de pedra. À minha volta vejo o gelo do último período glaciar e percebo o risco para toda a existência, a minha, a do grupo, a da espécie. Sinto medo, não tenho a mínima ideia se amanhã seremos.

Regresso ao aparente conforto e penso que esse foi também o momento. Era preciso juntar o ser intelectualmente consciente com uma ameaça total à sua vida.

Essa junção deu-se na última idade do gelo. Antes já o mundo tivera condições climáticas extremas, mas faltou-lhe o ser. Depois teve o ser, mas faltou-lhe a penúria vivida. Ser e horror cruzaram-se há 20.000 anos: Nasceu a arte.


Luís Novais

Foto: Bisonte de Altamira. c: Janeb13

Sem comentários:

Enviar um comentário