sexta-feira, 4 de novembro de 2016

FLAUBERT, O VISIONÁRIO. A propósito de “Bouvard e Pécuchet”


Obra inacabada na qual o autor investiu uma grande parte da sua vida literária, “Bouvard e Pécuchet” (publicado postumamente em 1881) é muito mais do que um produto do seu tempo, trata-se duma visão do futuro, pelas tendências literárias, sociais e antropológicas que demonstra e porque aborda questões que viriam a ser centrais durante todo o século XX e que são também da atualidade. Visionário, neste livro Flaubert (1821-1880) parece um adivinho dos quase 150 anos de História que lhe sucederam.

Não conseguimos entender quão percursor, se não abordarmos o longo passado que foi necessário para aí chegar. Quando “Bouvard e Pécuchet” foi dado à estampa, tinham passado uns 1100 anos de lenta recuperação da racionalidade no ocidente europeu. Passada a congestão provocada pela queda do Império Romano, as cortes carolíngias começaram a reunir os sábios da época e foi daí que ressurgiu a célebre questão dos universais, recuperando uma temática sempre presente na Filosofia ocidental: A separação entre os sentidos e a razão. Inserido neste movimento e retomando a obra de Porfírio, Escoto Erígeno (810-877) foi o primeiro medieval a dedicar-se ao tema, defendendo que razão e Deus jamais poderiam ser contraditórios e que era por aquela que se chegava a Este. Anselmo de Cantuária (1033-1109) seguiria o mesmo caminho mas por uma via inversa que está espelhada na sua célebre frase de clara influência agostiniana, “credo ut intelligan”, “creio para compreender”.

Naqueles distantes séculos estava aberta a porta ao regresso duma racionalidade que na Idade Média andou de mãos dadas com a religião, fundindo os dois absolutos que podem unir a fragmentação cósmica com que o homem, ser consciente de si, sempre se confronta na relação individual com o outro e com o universo.

A certeza escolástica no carater divino da criação não admitia qualquer mutação e era um forte esteio do imobilismo social. Enquanto as condições o permitiram, esta visão foi a dominante, ainda que o movimento popular, quase espontâneo e certamente incontrolado que foi a Cruzada dos Pobres (1095-1096) tenha mostrado a face oculta dum caldeirão social à espera de explodir.

Foi preciso esperar pela expansão marítima para que essa explosão se desse, e não é por acaso que o renascimento surge na península itálica, a região da europa ocidental que primeiro centralizou o comércio com o distante oriente e, por isso, conheceu por antecipação a mobilidade que podiam proporcionar os “novos mundos”. Mas foi com a chegada às américas (1492) e uma vez navegado o caminho para a India (1498), que se abriram as portas ao terramoto social que expandiu o renascimento e que permitiu ao indivíduo libertar-se e descobrir-se a si mesmo.

Profundamente antropocêntricos, os renascentistas acreditaram na plenitude da dimensão humana e na capacidade de cada um para, através da razão, encontrar harmonia e verdade. Duzentos e cinquenta anos antes de Flaubert escrever “Bouvard e Pécuchet”, Thomas Morus (1480-1535) escreveu “Utopia” (1516) onde um personagem português chamado Rafael narra as suas viagens por essa ilha, “onde tudo está organizado racionalmente de acordo com o interesse público”, e onde os cidadãos creem que “uma vida agradável, quer dizer, de prazer, é prescrita pela natureza como finalidade das nossas ações; e definem a virtude como viver segundo estes preceitos”.

Duzentos anos depois de Morus, Jonathan Swift (1667-1745) dava à luz “As Viagens de Guliver” (1726). Em diferentes aventuras, o personagem confronta-se com a irracionalidade da corte liliputiana onde os negócios públicos são conduzidos por caricaturas inauditas das cortes europeias desse tempo: “(Quando) uma posição oficial fica vaga, cinco ou seis (…) candidatos pedem ao imperador que organize um sarau de dança sobre a corda (…). O posto é conquistado por aquele que consegue saltar mais alto sem cair”. Em Lilipute as disputas cortesãs de homens metaforicamente minúsculos davam-se entre os defensores dos tacões altos e os dos tacões baixos e as guerras rebentavam entre os adeptos de partir os ovos pelo lado redondo e os do lado elíptico. A sociedade ideal encontrou-a Guliver no país dos houyhnhms, criaturas quadrupedes, governadas pelo que poderíamos considerar um déspota iluminado e com um sistema de governo racional, cujo monarca escuta Guliver contar-lhe o funcionamento do seu país natal, para depois concluir que as “(vossas) instituições políticas e judiciais” são “claramente fruto da (vossa) falta de razão (…) porque para governar uma criatura racional basta apenas a razão”.

Esta crença num absoluto racional secularizado será uma luta de duzentos anos que atravessou renascimento e iluminismo. Dir-se-ia que, uma vez descoberto o individuo, os novos pensadores acreditavam na racionalidade como integradora antropológica e cósmica. Uma crença tal que os levou à convicção de que que dispensaria a opressão do homem sobre o homem, levando a que todos alcançassem os mesmos princípios e ações.

Garantir uma organização racional do Estado tornou-se uma obsessão. Em “O Espirito das Leis” (1748), o barão de la Brède, mais conhecido por Montesquieu (1689-1755), procurou uma fórmula para garantir um poder partilhado e alternativo ao absolutismo, defendendo o modelo de divisão dos poderes que hoje é apanágio do Estado de Direito Democrático. Catorze anos depois, em “Do Contrato Social” (1762), Rousseau (1712-1778) partirá do princípio da bondade natural do homem (que explora mais aprofundadamente em “Emílio”, também de 1762) para defender que a relação do homem com o Estado deveria ser resultado duma contratualização e não duma submissão.

Este grande debate acabaria por ser a base do primeiro país que surgiu dum modelo e não duma antropologia, os Estados Unidos da América, cuja constituição (1787) se funda nos ideais iluministas. Apenas dois anos depois rebentaria a Revolução Francesa e na sala do jogo da péla exigia-se também uma constituição que regulasse o exercício do poder. Foram 10 anos de aventura revolucionária, que deram muito trabalho à guilhotina e que terminariam, já no advento do século XIX, com outra aventura, agora capitaneada por esse corso chamado Napoleão.

Depois desta década revolucionária já nada poderia ser igual: Os modelos sonhados pelos iluministas foram triunfantes, pelo menos em ideologia, e, apesar da reação romântica, todo o século XIX foi uma progressiva perda da espiritualidade e um caminhar no sentido da racionalidade secular e materialista. O grito do Ipiranga no Brasil, as independências da américa espanhola, as constituições de Cádis e a portuguesa de 1822 bebem de Montesquieu e Rousseau. A razão tornava-se a base de todo o conhecimento, de toda a forma de governo e o método científico era a nova liturgia de acesso à verdade e, até, ao bem universal.

Foi preciso esperar até á primeira década do século XX para que a fé na bondade de todo este edifício começasse a sofrer abalos, e a machadada final foi dada pela mais mortal das guerras até então conhecidas: Como acreditar que a ciência por si só nos conduziria ao bem, se os milhões de mortos de 1914-1918 se deveram aos progressos científicos? A humanidade horrorizava-se com aquilo que conseguiu e o pior ainda estava para vir, como bem sabemos. A objetividade da ciência começava a ser posta em causa e a capacidade da razão para universalizar deixava de ser um princípio inquestionável para as elites. Verdade e realidade tinham agora múltiplas perspetivas, num movimento em que o cubismo de Picasso (1881-1973) constitui talvez a mais significativa representação nas artes plásticas, e o desmultiplicar dos eus de Pessoa (1888-1935) na literatura. O indivíduo não era afinal um ser livre e governado pela razão, mas uma presa fácil da opressão burocrática, como tão fielmente está retratado em “O Processo” de Kafka (1883-1924), publicado postumamente em 1925. No extremo, recusava-se qualquer sentido à realidade, na orgia dadaísta.

Mas depois do tempo, tempo vem, e os grandes absolutos voltaram à carga com os nacionalismos que por sua vez se desmoronariam em 1945.

Derrotados o nazismo e o fascismo, seguiram-se-lhes outras “certezas” alimentados por uma “guerra fria” onde se confrontaram dois sistemas, duas concepções de vida distintas e duas promessas diferentes. Entre 1945 e a simbólica queda do muro de Berlim em 1989, poucos tinham dúvidas sobre o modelo político, económico e social em que queriam viver, fosse por crença própria, fosse por medo da alheia.

O fim desta nova época de grandes ideias e grandes certezas acabou em duas datas, a de 1989, de que já falamos, e a de 2007, quando a chamada crise do subprime deixou em claro as fragilidades do modelo liberal capitalista e a destrutiva promiscuidade existente entre este e o templo da racionalidade que são as universidades. Caía por terra um mito entretanto tecido: O do Homem libertado de todas as amarras graças à globalização e à suposta livre iniciativa.

Perdidas as certezas, depois dos progressos que se foram dando nos mecanismos de propaganda, da expansão meios de comunicação de massas e com o advento da internet como difusora ao dispor de todos, só restava a palavra e a palavra tomou o lugar duma verdade que já contava menos do que a mentira muitas vezes e bem repetida. E foi com palavras, não com ideias, com mentiras, não com verdades, que nos convenceram a fazer as recentes guerras da pós-modernidade.

Hoje, enquanto uns se refugiam na superficialidade de conceitos aparentes, outros olham para esse outro absoluto, o místico, o irracional, o que assenta na fé e não requer uma prova na qual, afinal, a maioria já não consegue acreditar. Consultam-se bruxos e chamans, fazem-se viagens para destinos místicos, adere-se a novos e velhos sagrados. Como bem desenvolveu George Steiner em “Nostalgia do Absoluto”, quanto mais misterioso e desconhecido, mais facilmente se adere, porque a descrença é, afinal, no conhecimento e no poder da razão.

Falta apenas cair um pilar que já está em abalo, o da crença numa Justiça independente e capaz de julgar. Chegaremos então, e em parte já chegamos, à sua substituição pelo julgamento on line, publico e popular, que mancha e condena mesmos sem condenação. Quando e se isso acontecer, entraremos de frente numa nova era, essa a que chamo a inmodernidade.

Vêm tempos difíceis para os que somos descendentes do renascimento e do iluminismo.

Voltando a Flaubert e a “Bouvard e Pécuchet”
O que mais surpreende é que todo este devir já está anunciado nas aventuras e desventuras dos dois personagens. Cinquenta e três anos antes de Aldous Huxley (1894-1963) publicar aquela que é talvez a primeira obra de desilusão modernista com o homo cientificus, “O Admirável Mundo Novo” (1932), e enquanto os seus contemporâneos procuravam fundir literatura com ciência, Flaubert usa esta última para se revoltar contra a dimensão da promessa feita, uma revolta que, em abono da verdade, já tinha sido prenunciada no distante 1818 pelo Frankenstein de Mary Shelley (1797-1851).

“Bouvard e Pécuchet” desenrola-se em torno destes dois personagens, ambos copiadores de documentos em diferentes escritórios, que se conhecem por acaso num banco de jardim parisiense, gerando-se uma amizade que os levará a largar tudo e a viver juntos numa casa de campo. Os dois são uma espécie de metáfora do cidadão com alguma ilustração e incapaz de viver de acordo com o modelo racional que foi advogado desde Morus até Montesquieu. Uma metáfora que está presente até na profissão original dos dois: copiadores, antes de enveredarem por uma aventura de múltiplos conhecimentos, de ilusões múltiplas.

A primeira parte da obra foi publicada em 1881, um ano depois da morte do autor, e ficou inacabada. A segunda nunca chegaria a ser escrita, conhecendo-se apenas alguns rascunhos. Trata-se, portanto, dum livro que foi escrito em pleno período realista e naturalista, já passada a reação romântica e numa época plenamente assenhoreada pela racionalidade de base científica e pela crença de que esta poderia criar um mundo novo, mais bom do que “admirável”.

En passat, diga-se que foi claramente inspirado por estes dois personagens que, em 1938, Sartre (1905-1980) criou o Autodidata de “A Náusea”.

Ao longo do livro, os dois “bons homens” irão entusiasmar-se e desentusiasmar-se por uma sucessão alucinante de saberes, tudo começando quando, sem perceberem as causas do seu insucesso numa empresa agrícola, “Pécuchet concluiu com estas palavras: - Talvez seja porque não sabemos de química!”

A partir desta constatação inicial, entram numa espiral sucessiva de procura de novos saberes. Começando pela química, encomendam um “Curso Elementar”, da autoria de Regnault, que foi publicado em 1840, onde aprendem que “um corpo pode comportar-se como um ácido ou como uma base, conforme as circunstâncias”. Depois duma longa discussão, Pécuchet desabafa que “Em resumo, não entendo”, logo secundado por Bouvard, “Nem eu!”. Chegaram até a sentir-se humilhados quando ficaram a saber que “os seus corpos continham fósforo como os fósforos, albumina como a clara de ovo, hidrogénio como a chama do gás”.

Desiludidos com a química, partem para a anatomia, fazendo experiências com os próprios corpos, para logo concluírem: “Não entendo nada! E no entanto movo-me”. Não desistiram à primeira, ainda que nenhuma experiência funcionasse: “As pombas que dessangravam, quer tivessem o bucho cheio ou vazio, morriam no mesmo lapso de tempo. Uns gatinhos mantidos debaixo de água morreram passados cinco minutos”. Enfim, a anatomia revelava-se mais uma desilusão e “ao não terem conseguido compreendê-la, deixaram de acreditar nela”.

Seguiu-se a medicina, com um impacto nas suas vidas pessoais que nos faz sorrir quando pensamos na atual cultura geral médica de quase todos os cidadãos, sustentada na internet, na televisão e num ou outro livro de divulgação:

“Germaine (a empregada doméstica) perplexa já não sabia o que lhes levar à mesa.
Todas as carnes apresentavam inconvenientes. A morcela e os enchidos, o lavagante e a caça são refratários. Quanto maior um peixe mais gelatina contem e, por conseguinte, é pesado. Os legumes provocam acidez, o macarrão dá sonolência, os queijos (…) são dificilmente digeríveis. Um copo de água de manhã é perigoso, toda a bebida e todo o comestível iam acompanhados de admoestações deste tipo.”

Tudo isto era seguido com desconfiança pelos burgueses da cidade, que entretanto iam recebendo com indiferença submissa os avanços e recuos políticos do conturbado século XIX francês. Os dois personagens pretenderão sucessivamente ser historiadores, arqueólogos museólogos, escritores… Aderiam entusiasmados aos novos conhecimentos, encomendavam livros, passavam dias sem comer, discutindo aquilo que aprendiam, para logo desistirem quando, avançados na matéria, percebiam que não havia certezas, que as opiniões dos sábios eram contraditórias e que tudo era, afinal, muito mais complexo do que haviam imaginado.

Quando, por exemplo, decidem tornar-se escritores, procuram primeiro definir a estética, mas “para Schelling, é o infinito que se expressa através do finito; para Reid, uma qualidade oculta; para Jouffroy, não é analisável; para De Maistre, aquilo que é do agrado da virtude; para o padre André, o que é conforme à razão”. Perante tantas visões, desistem quando Bouvard conclui que “Todos os autores de retóricas, de poéticas e de estéticas me parecem uns imbecis!” Igual incapacidade para entender e aceitar as dicotomias dos saberes, quando renunciaram à medicina: “Os mecanismos da vida são-nos desconhecidos, as infeções são demasiadas, os remédios problemáticos. E nos livros não se encontra uma só definição razoável de saúde, de doença, de diátese, nem sequer de pus”.

“Bouvard e Pécuchet” é, assim, um livro que surge em pleno período de triunfo do racionalismo secular e científico, e nasce como uma crítica à viabilidade duma sociedade composta por seres racionais, muito capazes de compreender e muito capazes de usufruírem racionalmente da sua liberdade. É uma espécie de obra sobre a utopia da “Utopia”, essa que Thomas Morus escrevera uns 350 anos antes e que foi um marco base a partir do qual se defenderam modelos de Estado assentes sobre uma cidadania racional. Na sua patética busca pelo conhecimento, os dois personagens são uma espécie de Quixote renascido, esse que “de pouco dormir e de muito ler se lhe secou o cérebro”.

A busca mística
Uma das características da nossa pós-modernidade é um neo-misticismo, fundado na redescoberta religiosa, por vezes tradicional, geralmente exótica. Aquilo que em “Nostalgia do Absoluto” George Steiner diz ser a adesão por desconhecimento porque o conhecimento retira mistério. E aqui entram velhas religiões, fundamentalismos, uma crença nas Igrejas tradicionais, aparições fantásticas ou as novas fés de mensagem simplificada que comercializam o milagre e a relação entre o sagrado e o profano.

Nos intervalos entre os seus entusiasmos racionalistas, também Bovard e Pecuchet tiveram ataques de misticismo. Desde logo, quando o projeto agrícola que começam por abraçar não deu certo e Pécuchet concluiu que “Talvez afinal a sorte não nos sorria! E queixaram-se da providência e da natureza”, acreditando ao mesmo tempo que poderiam ter tido êxito, “tão só o destino assim tivesse querido” (p 94)

Mas o verdadeiro misticismo ataca-os quando, depois duma tentativa de suicídio na noite de Natal, decidem sair e assistem à missa do galo, sentindo “como uma aurora nascer nas suas almas” (p 294). É então que “o evangelismo lhes inundou a alma, os deslumbrou tal qual um sol”. Na mesma atitude de sempre dedicaram-se às leituras bíblicas e, como sempre, começaram a sentir a desilusão: “a Bíblia, com os seus profetas de voz de leão, o rugir da tormenta nas nuvens (…) aterrava-os” (296). Desesperados por sentir fé, começam a frequentar o padre local, ao qual perguntam o que fazer para encontrá-la e do qual recebem apenas um conselho: praticá-la. “E puseram-se a praticar” (297), e “para obter o dom da perseverança (Pécuchet) decidiu ir em peregrinação à santa Virgem”.

Nesta fase mística dos dois personagens, nenhuma passagem é tão ilustrativa como um pensamento de Bouvard quando está prestes a comungar: “O que ia ocorrer dentro em breve (a consubstanciação) era inexplicável (…), mas a razão não basta para compreender determinadas coisas”.

Todavia, este Bouvard e este Pécuchet são homens duma época e com um percurso que é uma metáfora da História, já não lhes era possível simplesmente regressar à Idade Média. Ao primeiro, “tinham-lhe prometido que o sacramento o transformaria (…). Continuava a ser o mesmo e foi dominado por um estupor doloroso”: Como é que “a carne de Deus se mistura com a nossa carne e não acontece nada?!”

Constatado isto, repete-se o padrão:

“Recorreu a escritores místicos: santa Teresa, san Juan de la Cruz, Luis de Granada, Scupolo. E a outros mais modernos, como monsenhor Chaillot. Em vez das sublimidades que esperava, não encontrou se não banalidades, um estilo muito débil, frias imagens e muitas comparações retiradas do mostruário dos lapidários” (310)

Começando a desabafar com o padre e colocando-lhe problemas religiosos e morais cada vez mais complexos, o sacerdote apenas lhe repetia: “Não se atormente. Quando alguém tenta chegar ao fundo de tudo, desliza por uma rampa perigosa”. Não encontrando respostas satisfatórias na religião tradicional, Pécuchet “tornou-se transcendente, mitológico. Comparava a Virgem com Isis, a eucaristia com o homa dos persas, Baco com Moisés, a arca de Noé com a barca de Xithuros” (316). Finalmente, e como não poderia deixar de ser, “não frequentaram mais o padre” (323).

O escândalo entre os burgueses locais rebentou quando, numa atitude bem típica desta nossa pós-modernidade, perante o grupo de ilustres cidadãos onde estava também o sacerdote…

“…Pécuchet declarou que quase preferia o budismo.
O Padre desatou a rir:
- Ah ah ah, o budismo!
A senhora Noaris levantou os braços:
- O budismo!
- Como… como o budismo? – repetia o conde.
- Por acaso conhece-o? – perguntou Pécuchet ao padre Jeufroy (…) -. Pois bem, saiba-o!, é melhor do que o cristianismo (…) e, quanto à encarnação, Visnú não encarnou apenas uma vez, mas nove! Assim que julguem vocês!” (330)

Os dois personagens terminam no maior dos descréditos. Já quase no fim da obra, sempre que paravam numa casa para denunciar uma superstição, “os habitantes, que os conheciam de os terem visto primeiro como médicos, depois procurando móveis velhos, ou pedras, respondiam: - Fora daqui, palhaços! Não nos venham dar lições”. (360)

Algumas notas visionárias
Não temos uma ideia clara de como Flaubert pretendia terminar este primeiro volume de “Bouvard e Pécuchet”. Ainda assim deixou-nos algumas notas que nos permitem vislumbrar o desenlace. O que parece certo é que, desiludidos com a busca do conhecimento, os dois homens decidem regressar ao trabalho de copiadores:

“Uma boa ideia alimentada pelos dois. Mas dissimulam-na um ao outro. De vez em quando, sorriem quando a ideia os assalta, logo a comunicam em simultâneo: copiar” (375)

Algumas das notas são muito simples, mas extremamente interessantes pela premonição que contêm dos quase 150 anos que passaram depois de terem sido escritas:

“A América terá conquistado a terra.” (372)
“Fim do mundo como consequência da interrupção do princípio calórico.” (372)
“A Europa será regenerada pela Ásia. Como a lei histórica quer que a civilização se mova do oriente para o ocidente, papel da China, as duas humanidades finalmente se fundem.” (373)
“Se armazenará a luz, pois há corpos que possuem esta propriedade.” (373)
“Se viajará aos astros, e quando a terra estiver esgotada, a humanidade mudar-se-á para as estrelas.” (373)

Outros aspectos e conclusão
A análise desta obra deve passar também pelo posicionamento político de Flaubert, um autor profundamente desiludido com a capacidade da burguesia para construir a tal sociedade racional que esteve na base ideológica da sua conquista do poder, mas para a qual não estaria preparada.

Esta desilusão é típica dos intelectuais da época e podemos encontrá-la noutros autores, incluindo os da generalidade da nossa chamada Geração de 70.

Em “Bouvard e Pécuchet” há uma clara crença na inaptidão da burguesia para se governar, regenerar e emancipar. A intelectualidade que rodeia os dois “bons homens” é medíocre, mesquinha e incapaz de compreender o seu tempo e de se libertar.

Outro aspecto interessante é a visão da educação que apresenta, patente numa caricatura da confusão de conceitos que as obras sobre o tema poderiam provocar. No decorrer da obra, os dois personagens encarregar-se-ão de educar duas crianças abandonadas, perdendo-se num emaranhado de conceitos educativos bebidos das obras dos pedagogos mais famosos da época. Tudo redundará num desastre, até que lhes retiram as crianças.

A primeira questão está bastante estudada e é o objeto quase único da introdução de Jordi Llover à edição a que tive acesso. Quanto ao tema educativo, seria interessante para um estudioso de Ciências da Educação, mas sai do âmbito desta análise, que é caráter visionário da obra.

E nesse âmbito não resta dúvida que este foi um livro muito avançado para a época, o que explicará a razão por que foi tão mal recebido pela crítica. Num período em que a razão secular, a ciência e o método científico eram uma espécie de base comummente aceite pela elite, uma obra que põe o dedo na ferida e denuncia as fragilidades desta visão e a incapacidade real da sociedade para viver de acordo a esse ideal, seria incomodo de mais para ser aplaudido pelas elites. Antecipando incomodidades que só mais tarde surgiriam, algumas das quais são as dos nossos dias, em “Bouvard e Pécuchet” Flaubert teve a genialidade dos que ultrapassam o seu tempo e são influenciados não pelo que se viveu, sequer pelo que se vive, mas pelo que virá.



Luís Novais



Nota: A edição a que tive acesso foi uma tradução para castelhano  da “Penguin Classics”:  FLAUBERT, Gustave. “BOUVARD Y PÉCUCHET”. Edición al cuidado de Jordo Llovet. Traducción MONREAL, José Ramon. Penguin Random House Grupo Editorial. Barcelona 2009

Sem comentários:

Enviar um comentário