quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

OS GATOS E O SACO DE ANTÓNIO COSTA



Estas décadas de História já nos deveriam ter ensinado que sacrificar o amanhã em nome de falsas unanimidades hoje, traz maus resultados.

António Costa é perito nas quadraturas de círculo, mas agora faltou-lhe um dos ângulos. Fez um acordo com a esquerda para derrotar a direita e para isso assumiu compromissos. Para cumprir esses compromissos fez um acordo que em parte contraria os parceiros da esquerda. Para derrotar estes e ao mesmo tempo cumprir com o que lhes prometeu, queria um acordo com a direita, essa contra a qual já antes se coligara com os mesmos que precisa agora de derrotar.

Esta é a parte da questão que pertence ao jogo partidário, e só não nos surpreende porque já estamos habituamos. O pior é quando os jogos de poder nos tocam a nós e, para se sustentarem no presente imediato, os políticos põe em causa o futuro de todos.

Não é preciso explorar aqui a instabilidade do edifício da nossa segurança social, corroído por problemas demográficos e por modelos de compensação que foram pensados no tempo em que o presente era apenas o futuro, um erro que António Costa se preparava para repetir e que foi já antes cometido por muitos pretensos senadores da república, que agora rasgam as vestes contra a posição de Passos Coelho.

Estas décadas de História já nos deveriam ter ensinado que sacrificar o amanhã em nome de falsas unanimidades hoje, traz maus resultados. É por isso que sou contra este acordo, no qual duma geringonça se quer fazer um saco onde caibam cada vez mais gatos.

Tenho basicamente três motivos para isso:

1. Sacrifica-se o futuro ao presente. Esta questão é precisamente aquele que acabo de referir. Os defensores do acordo dizem que ele é neutro porque o aumento de salários vai significar um crescimento de receitas nas contribuições sociais, que compensa a quebra. Esquecem-se que qualquer aumento não é neutro no futuro, esse mesmo que não se importam de sacrificar para ficarem um pouco mais confortáveis no presente

2. Desconfio dos políticos. Claro que pode sempre surgir o argumento de que a perda de receita é diminuta, ou tendente a zero. O problema é a porta que se abre: Se aceitamos este princípio agora, não faltarão soluções idênticas para os mais díspares problemas no futuro. Agora é o salário mínimo, depois vem a economia global e a concorrência dos países sem modelo social adequado, depois é a competitividade das empresas e mais e mais e mais… A tudo isto, digo Não, mas um Não rotundo: As verbas sociais são sagradas, são justas e não devemos deixar cair esse princípio em nome de nada.

3. Agrava o problema do trabalho. Já aqui defendi noutra ocasião que o Estado não se deve meter com as empresas quando estas decidem substituir o trabalho pela tecnologia. É uma opção económica legítima e que, a prazo, liberta o ser humano para funções por ventura mais valiosas e compensadoras. Mas se o Estado não deve intervir para impedir, tampouco o deve fazer para incentivar e isso é o que está a fazer, quando taxa socialmente o trabalho em vez da produção (ver aqui: Para Acabar com a Taxa Social sobre o Trabalho). Quando um Governo faz aquilo que Costa pretende, atinge-se o grau máximo do incentivo à degradação: Impulsiona-se a opção pelo trabalho com a remuneração mínima, quando o estímulo, a existir, deveria ser o contrário.

Uma referência final para regressar à questão partidária. Muitos têm atacado Pedro Passos Coelho por uma hipotética incoerência já que, dizem, ele mesmo já defendeu a diminuição da Taxa Social Única. Entre estes, a primeira linha é formada por uma brigada do reumático do PSD, encabeçada por nomes como Silva Peneda ou Manuela Ferreira Leite que, aliás, tem uma argumentação de que nem Ricardo Araújo Pereira se lembraria para os seus Gatos Fedorentos: Acha que está mal, mas Passos Coelho não deveria fazer nada!

Este é um peditório de luta partidária para o qual não dou. Se Coelho pensou assim e agora pensa diferente, melhor para nós. Pior para nós quando, na antítese, Costa não pensava assim e agora pensa.


Luís Novais

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

PORTUGAL E A CADA VEZ MAIOR DESUNIÃO EUROPEIA


Já não tinha dúvidas mas, se as tivesse, tê-las-ia perdido sobre a periclitante situação europeia e, desculpem se agora penso mais em nós do que nos outros, o que me preocupa é a impreparação dos nossos políticos e esta apatia cidadã. Claramente, estamos a seguir um caminho de forma monolítica, sem pensar que, de repente, tudo se nos pode escapar debaixo dos pés.
Enquanto um quase presidente e uma ainda chanceler se desentendem em público, convém lembrar que a União Europeia e a Nato são os dois esteios em que assentam as nossas políticas económicas e de defesa. Se a Alemanha é a maior potência da Europa, os Estados Unidos são o suporte da aliança militar. Sem os alemães acaba a União Europeia, sem os americanos acaba a Nato e sem cooperação entre os dois lados do Atlântico acabam ambas, iniciando-se uma nova era, que ainda ninguém entendeu muito bem como será.
É certo que nunca sabemos quando é que Trump planifica ou não o seu discurso, mas não pode ser por acaso que tenha escolhido uma entrevista a dois jornais europeus, The Times e Bild, para lançar algumas frases que, proferidas por uma mente com critério, seriam bombas: “Acho que o Brexit foi uma grande coisa”, “Outros países vão deixar a União Europeia”, “(A União Europeia) é basicamente um instrumento para a Alemanha”.
Surpreende a reação, ou antes, a não reação deste lado do Atlântico. Além duma dureza moderada da chanceler, não ouvi qualquer outro líder rechaçar tamanhas declarações, exceto a insignificante alta representante da UE para as relações externas, Frederica Mogherini, mesmo assim de uma forma tíbia e quase duvidando daquilo afirmava. Não, não criticou Trump por se meter na vida europeia, disse apenas que “respeito a opinião do quase presidente dos Estados Unidos”. Não, não fez uma declaração forte e segura sobre a solidez do edifício europeu, limitou-se a completar aquela frase com um “…mas penso que a União Europeia ficará OK no futuro”. Isto depois de ter dito “Eu penso que a União Europeia continuará junta”… ouvi bem?  Disse “Eu penso que…”? E isto para já não referir a forma como falou, cheia de interjeições e apresentando-se com a postura de quem não está mesmo nada convicta daquilo que afirma.
A única conclusão é que a Europa já não tem líderes capazes de por ela lutarem e de por ela darem a cara. A eurocracia deixou esse caderno de encargos a uma burocrata quase insignificante e, enquanto Trump crava punhaladas na União, Marcelo Rebelo de Sousa estava contente porque teve direito a 12 minutos de conversa telefónica. Depois da eleição norte-americana, suponho que o cabo transatlântico foi sobrecarregado pelas chamadas dos chefes de estado e de governo europeus, certamente alguns com direito a um bocado mais dos que os tais 12 minutos.
Já não tinha dúvidas mas, se as tivesse, tê-las-ia perdido sobre a periclitante situação europeia e, desculpem se agora penso mais em nós do que nos outros, o que me preocupa é a impreparação dos nossos políticos e esta apatia cidadã. Claramente, estamos a seguir um caminho de forma monolítica, sem pensar que, de repente, tudo se nos pode escapar debaixo dos pés.
Que pelo menos a cidadania comece a discutir as vias alternativas, que se comecem a traçar novos caminhos, a vislumbrar outros espaços naturais em que nos possamos integrar.
Eu, que sempre me senti atlântido, acredito que temos opções. Independentemente da via, é urgente sair desta fase de negação. Há uma grande probabilidade de que o espaço geoestratégico em que nos movemos durante estes 30 anos deixe de existir. Nessa situação, se não queremos que também o nosso país caia nas mãos de demagogos ou, até, de ditadores de pacotilha, temos de definir, e claramente, para onde e como vamos?


Luís Novais

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

SENTIMENTO EM TORNO DA MORTE DE SOARES



Todo este foi o meu sentimento quando assisti na televisão a esse fim dos tempos representado por aquele réquiem, por aqueles discursos, aquelas caras, aquele caixão justamente coberto pela bandeira nacional, aquela voz declamante de Maria Barroso. Talvez estejamos exaustos, não sei, talvez nos sobrem os falsos banqueiros, os políticos corruptos, os governantes que insistem trilhar chão que já não vive. Talvez. Mas credito, quero acreditar, que temos alternativas, que ainda contamos com os Soares e com os Sás Carneiro, que ainda temos cepa para concretizar. Afinal, a energia, toda a energia, é o sonho.

Gosto de sentir antes de escrever e não escrevo enquanto não sinto. Mais a mais quando quero falar de algo e alguém sobre cuja vida e morte já tudo e de tudo se disse; do mais laudatório ao mais infamante, do bem fundamentado ao que se baseia em boatos que não resistem a uma rápida verificação. Refiro-me a Mário Soares, claro.

Tive o sentimento que me levou à escrita quando na televisão vi partes da cerimónia fúnebre, com os discursos dos filhos do ex-presidente entrecortados pelo som do réquiem, com a sua imagem entrecortada pela dos que estavam presentes e pela dum caixão de Bandeira Nacional coberto.

Nesse preciso momento, tive um sentimento de grande perda, mas não, não me refiro ao homem cuja morte naturalmente lamento e me pesa, refiro-me à História. Naquele preciso momento senti que era a nossa História, um dos seus períodos, que estava a ser enterrada, que toda a celebração era um adeus, não a alguém, mas a uma época.

Soares era um homem mais do que feito quando se deu o 25 de Abril, tinha 50 anos. O seu percurso foi o duma geração que começou por sonhar democracia e por ela lutou, essa mesma a que pertenceu também outro dos pais fundadores do nosso regime, Sá Carneiro.

Depois de dar tudo por tudo pelo modelo de regime, essa geração teve de encontrar uma alternativa ao sistema económico fechado e colonial que era anteriormente vigente. A descolonização foi e teve de ser apressada, não por culpa de Soares ou de alguém depois de 1974, mas por criminosa negação daqueles que antes nos governaram e que, por se recusaram a entender o seu tempo, agiram exclusivamente a seu modo.

Economicamente, o modelo de “capitães de indústria” em que assentava o tecido empresarial salazarista também já estava esgotado e não resistiria a uma competição fora dos mercados protegidos com que antes contavam. Que eu saiba, ainda ninguém se dedicou a fazer um sério estudo sobre a situação económica dos grandes conglomerados industriais e financeiros que se desmoronaram em 1974. Quando isso for feito, desconfio que vamos ter surpresas ainda maiores do que aquelas que tivemos recentemente, quando nos inteiramos do estado em que estavam as nossas maiores empresas, os nossos maiores bancos… com a diferença que estes últimos não tiveram a sorte duma revolução que pudessem culpar, que lhes lavasse a imagem, que os transformasse em vítimas de suposta espoliação.

Para aqueles que em 1974 sonhavam com uma democracia de cariz ocidental, não restava outra via política e económica que não fosse a europeia, e foi essa hipótese que agarraram com unhas e dentes. Soares formalizou o pedido de adesão em 1977, Sá Carneiro continuou-o e, finalmente, seria um Soares novamente primeiro-ministro e já candidato a presidente quem assinou o tratado de adesão em 1986. Lembro-me bem desse momento; talvez o facto de ter decorrido naquele mesmo espaço dos Jerónimos, esse onde agora nos despedíamos, tenha sido a ironia que faltava para me provocar este sentimento de estar a assistir a um fim de ciclo.

Coube depois a Cavaco Silva operacionalizar a adesão, coisa que fez de forma medíocre, usando os recursos disponíveis para pequena política, esbanjando, aliando-se a uma elite cleptómana e devolvendo os grupos empresariais às mesmas famílias que os detinham antes de 1974. O custo da desastrosa situação que hoje vivemos, não é dos que nos sonharam europeus, mas dos que, depois disso, nos conduziram até aqui. Entre eles, o primeiro posto é ocupado por Cavaco Silva, mas está igualmente acompanhado por Guterres e por essa inenarrável cereja no topo do bolo que ainda se pensa político e se chama Sócrates. Passos Coelho, com a sua frontalidade, António Costa, com a sua malabarista bonomia, são tão vítimas destas duas décadas e meia como todos nós, e a única culpa que carregam é a de não serem suficientemente visionários e estadistas para conseguirem apresentar aos portugueses o sonho duma alternativa, coisa que os pais da nossa democracia, bem ou mal, conseguiram a seu tempo fazer.

Hoje, vemos os portugueses mais capacitados abandonarem o país, recusando-se com isso a meter nos cofres públicos o que foi desviado para bolsos privados, temos um tecido empresarial que, apesar das exceções, não consegue competir globalmente, existimos numa União Europeia em desmembramento acelerado, olhamos atónitos para os Estados Unidos transformados numa Roma de imperador incendiário…  Esta é a hora, tem de ser a hora, para repensar a geoestratégia nacional, para voltar a sonhar alternativas, para apontar e trilhar novos caminhos.

Todo este foi o meu sentimento quando assisti na televisão a esse fim dos tempos representado por aquele réquiem, por aqueles discursos, aquelas caras, aquele caixão justamente coberto pela bandeira nacional, aquela voz declamante de Maria Barroso. Talvez estejamos exaustos, não sei, talvez nos sobrem os falsos banqueiros, os políticos corruptos, os governantes que insistem trilhar chão que já não vive. Talvez. Mas credito, quero acreditar, que temos alternativas, que ainda contamos com os Soares e com os Sás Carneiro, que ainda temos cepa para concretizar. Afinal, a energia, toda a energia, é o sonho.




Luís Novais

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

GRANDEZA E PODER NA CIVILIZAÇÃO LAMBAYEQUE

Num território com estas características, tinha de haver uma organização social forte para que se fizesse a gestão da água, se construíssem canais de irrigação e se regulasse a sua utilização, transformando a árida terra num solo fértil, e originando aqueles excedentes que possibilitam uma acumulação sem a qual as civilizações não despontam.

Na pequena cidade de Túcume, a meia hora de carro de Lambayeque, capital da região peruana com o mesmo nome, cada família tem o seu santo, cujo culto celebra e ao qual recorre nas horas mais difíceis, pormenor que refiro pelo que adiante explicarei. A menos de 10 minutos, visita-se o sítio arqueológico, ou huaca como dizem os peruanos, de Túcume, um importante centro urbano Lambayeque, cultura que floresceu no noroeste do atual Peru entre os séculos VIII e XV, quando foi absorvida pelo império Inca, depois dum período de relativa submissão aos Chimús, outra cultura que se surgiu mais a sul, na atual região de La Libertad.

Passei o Natal de 2016 em Chiclayo, atualmente uma importante cidade comercial da região e, com a Yvonne, aproveitamos para conhecer melhor esta cultura, visitando-lhe os vestígios materiais, indo a museus e ouvindo-lhe as lendas e tradições. O que se segue são os sentimentos que esta busca me gerou.

Existindo entre os séculos VIII e XV, a civilização lambayeque foi uma das muitas que prosperaram no Peru pré-hispânico (foto: representação no museu do sítio de Túcume)


Zona arqueológica de Túcume
Quando aqui entramos, deparamo-nos com 26 pirâmides construídas ao redor duma montanha, que claramente teria um carater sagrado e serviria de denominador comum entre as diferentes construções. Estes edifícios, que eram simultaneamente locais de culto e residência das famílias mais poderosas, estão formados por adobes de terra amassada com fibras vegetais, cuja forma se assemelhava a um pão-de-forma com a base plana e o topo redondo, característica que, suponho, dava flexibilidade ao edifício e lhe permitia resistir aos sismos que são frequentes nesta zona do planeta.

As 26 pirâmides de Túcume foram construídas em torno duma montanha sagrada (maquete no museu do sítio)

Atendendo aos recursos e à tecnologia da época, a construção destes templos residenciais representou um grande investimento, o que nos permite supor uma estrutura social baseada no poder de várias famílias que formariam uma espécie de aristocracia sacerdotal. Os Lambayeques tinham também aquilo a que, por analogia ocidental, poderíamos chamar um rei.

Adobes com a base plana e o topo arredondado deveriam dar às pirâmides a flexibilidade necessária para resistirem aos frequentes sismos.


Ascenção e queda duma quase monarquia
A primeira referênca escrita a este “rei” ou senhor provem do cronista espanhol Miguel Cabello Valboa (“Miscelánia Antártica”, 1586), que passando pela região no século XVI recolheu a lenda de Naymlap (Homem Pássaro), um herói navegador que aqui teria desembarcado no século IX com um séquito de funcionários e concubinas. Segundo a lenda, internou-se um par de quilómetros costa adentro e aí mandou construir um templo piramidal, onde instalou um ícone de jade verde que representava o deus Yampallec, que não só se transformou na maior divindade desta cultura, como lhe originou o nome. O templo em questão chamar-se-ia Chot e deverá corresponder ao conjunto cerimonial hoje conhecido como Chotuna, formado por pirâmides e outras edificações, que está no distrito chiclayano de San José, perto da costa e a uns 50 Km desta cidadela de Túcume.

Do alto da montanha sagrada de Túcume temos uma visão panorâmica das 26 pirâmides que formavam a cidadela.

A mesma lenda seria igualmente recolhida em finais do século XVIII pelo pároco Modesto Ruviños y Andrade, que foi cura duma paróquia local. A sua descrição advém de registos orais da região e é muito semelhante à que, dois séculos antes, tinha sido escutada por Cabello Valboa.

A lenda da chegada no navegador Naymlap (Homem Pássaro), o mítico fundador da dinastia Lambayeque, parece estar representada neste alto relevo num templo de Túcume.

Segundo reza esta tradição oral, Naymlap teria instaurado uma dinastia da qual saíram 11 sucessivos “reis”, que governaram entre os séculos IX e XIV. O último deles foi Fempallec, responsável por transferir o ídolo de Yampallec do local sagrado de Chot (Chotuna), onde quinhentos anos antes tinha sido colocado pelo seu antepassado Naymlap. Conta a lenda que a mudança domiciliar enfureceu o deus, tendo manifestado a sua ira com o envio de chuvas diluvianas seguidas de grandes secas.

Maqueta do complexo cerimonial de Chotuna (em Chiclayo), que tará sido construído por Naymlap e onde terá colocado o ídolo de jade verde com a representação do deus Yampallec.


A pirâmide principal do complexo cerimonial de Chotuna (em Chiclayo) nos dias de hoje. Aqui residia a imagem de Yampallec, o mais importante deus do Olimpo Lambayecano. 

De acordo com a mesma lenda, este rei teve uma vida bastante atribulada e terminou os seus dias da pior forma. Não satisfeito com ter desalojado a divindade, atreveu-se a copular com um demónio que lhe apareceu disfarçado de uma bela mulher.a.

Copular com uma mulher-demónio, foi atrevimento que se somou fatalmente à mudança da residência do deus Yampallec, às consequentes chuvas, às seguintes secas e às suas fomes que isto terá originado numa sociedade agrária. Tudo junto terá sido suficiente para que os lambayecanos deixassem de suportar o atrevido rei, razão para que os aristocráticos sacerdotes se tenham reunido em concílio e proferido sentença: Considerado culpado de todas as tragédias e condenado a se lançado em mar alto, amarrado de pés e mãos. A lenda termina aqui e consta que, pelo menos até aos dias de hoje, Fempallec não voltou a ser visto por estas paragens. Fossem outras e talvez estivesse para eternos regresso numa manhã de nevoeiro.

Os Lambayeque tinham gostos sexuais diversificados. Não sabemos qual terá sido a posição escolhida pelo último rei para copular com o demónio que lhe apareceu na forma duma bela mulher.

Em seguida, os Lambayeques submeteram-se ao governo Chimú, outra civilização que floresceu um pouco mais a sul, na região hoje conhecida como La Libertad, e de que também falarei noutra ocasião.

A origem
A cultura Lambayeque seguiu-se à Moche, que se desenvolveu na costa norte do Peru a partir do século II. Os Moches tinham grandes contradições internas de que poderemos falar noutra ocasião, entraram em decadência pelo século V e a sua cultura extingue-se no VII. São sucedidos precisamente pelos lambayeques, na zona norte do seu território, e pelos chimús, mais a sul.

O despontar da civilização Lambayeque no século VIII, faz-nos adivinhar um período conturbado durante os duzentos anos que mediaram entre a queda da cultura moche e o aparecimento desta última. Refira-se que a região é uma costa desértica, entre-cortada por vales-oásis formados à custa dos rios que, nascidos nos Andes, correm para o Pacífico.

A sumptuosidade da arte fúnebre mostra que esta civilização tinha uma aristocracia forte, frente à qual o rei teria dificuldade para afirmar o seu poder. Na foto: máscara fúnebre da sacerdotisa de Chornancap, cuja sepultura foi descoberta em 2011


Num território com estas características, teria obrigatoriamente de haver uma organização social forte, para que se fizesse a gestão da água, se construíssem canais de irrigação, se regulasse a sua utilização e, assim, conseguir transformar esta árida terra num solo fértil, originando aqueles excedentes que possibilitam as acumulações sem as quais não despontam as civilizações. A esta mesma necessidade assistimos, por exemplo, no Egito, com a diferença de que aí se viveu à sombra dum grande rio que deu azo a um grande império centralizado. Na costa peruana não há nada de parecido a um Nilo, mas sim diversos cursos de pequena e média dimensão, que nunca permitiram uma concentração de riqueza suficiente para que pudesse surgir uma igualmente grande concentração de poder e, portanto, uma civilização que atingisse grande dimensão demográfica e territorial.

A monumentalidade dos palácios-templo onde vivia a aristocracia sacerdotal, comprova a existência dum importante grupo social, que deveria fazer contrapeso ao poder do "rei". Na foto: maqueta do complexo residencial da sacerdotisa de Chornancap (museu do sítio)

A tudo isto, acresce que o litoral peruano foi desde sempre afetado por fenómenos naturais, como é o caso de El Niño, que, periodicamente, destruíram tudo o que estava e obrigaram a sucessivas necessidades de reconstrução e a uma recomposição por vezes secular dos processos civilizacionais.

Necessidades e contradições
Temos então que estas culturas viviam uma contradição: Por um lado, as características naturais dum deserto com vales irrigados obrigavam a uma centralização capaz de planificar o uso da água; por outro lado, a relativa pequena dimensão das zonas férteis não permitia que o poder central se afirmasse com aquela grandeza necessária à cabal subjugação da sociedade. A isto acrescem os desastres naturais que, periodicamente, destruíam a riqueza e, a-fortiori, o poder acumulados.

Os Lambayeque decoravam os seus edifícios com altos relevos que depois pintavam. Na foto, zona cerimonial do templo de Chotuna, o local mais sagrado desta cultura.

A proliferação de grandes centros residenciais como Tucume com as suas pirâmides senhoriais, que eram também locais de culto, faz-nos supôr uma sociedade senhorial, com uma organização complexa, unida em torno dum mesmo deus e dum governante que teria dificuldades em afirmar-se junto dos seus muitos e poderosos pares. Nos períodos com vazios de organização, como terão sido os duzentos anos que decorreram entre a queda da cultura moche e o aparecimento da lambayeque, a necessidade de uma total reorganização criava as condições imprescindíveis ao aparecimento e aceitação duma espécie de rei, a quem se reconhecia uma unificadora legitimidade, sustentada talvez por um ato heróico, por um mito e, provavelmente, pela sua relação privilegiada com um deus comum.

A pirâmide de Chornancap, onde viveu uma representante da aristocracia sacerdotal cujo túmulo foi descoberto em 2011, é visível desde Chotuna, o local mais sagrado desta civilização, 

Esse terá sido o caso de Naymlap, o mesmo que, segundo a lenda, terá desembarcado nesta costa pelo século IX, trazendo consigo um ídolo de jade verde, tipo de pedra que não existe na região andina exceto numa zona muito específica da atual Colômbia. Não sabemos se Naymlap terá sido um estrangeiro aportado ao território, se um aventureiro autóctone que saiu à descoberta de novos mundos, usando os típicos barcos de fibra de totora cuja utilização já se conhecia na costa peruana pelo menos desde a civilização de Caral, surgida há 5.000 anos na região de Lima. Chegado ou regressado vivo, com um séquito, tendo contactado com outras culturas centro-americanas e trazendo consigo um novo deus, Naymlap tinha tudo para ser possuído duma força mítica, o que lhe dava aquela mesma legitimidade que, nesses anos conturbados, a reorganização social e territorial demandava.

Uma civilização e as suas saudações (cerâmica da cultura lambayeque no museu Bruning).


Diz também a lenda que, quando morreu, Naymlap se transformou num pássaro e voou para a sua terra, ficando imortal. Nesta parte da lenda é impossível não vislumbrar uma dupla necessidade: Social, para que o sobrenatural mantenha a unidade, e política, por parte dos seus descendentes, para afirmarem a origem divina do seu poder dinástico.

Diz a lenda que Naymlap se transformou num pássaro e partiu para uma terra distante (pássaro no templo de Chotuna)


A queda dum "rei"
Atendendo à clara fragmentação duma sociedade com senhores que eram tão poderosos como para construírem as 26 grandes residências piramidais de Túcume, é de supor que, passada a fase inicial de necessária submissão reorganizadora, tenhamos assistido a uma lenta guerra fria entre esta aristocracia e os descendentes de Naymlap, muito humanamente interessados na centralização do poder e na concentração da sua fonte, que era a terra arável e irrigada.

O episódio da retirada do ídolo do deus Yampallec do seu santuário ancestral corresponderia talvez a essa tentativa do monarca, que assim transferia o símbolo sagrado dum espaço possivelmente dominado pela velha aristocracia sacerdotal, instalando-o num outro que representava apenas a grandeza do governante.

O poder desta aristocracia foi recentemente reafirmado pela descoberta em 2011 do sumptuoso túmulo duma sacerdotisa em Chornancap, uma pirâmide que fica cerca de três quilómetros a ocidente do santuário de Chotuna, o mesmo onde originalmente foi colocado o ídolo de Yampallec. A múmia desta sacerdotisa ainda está em tratamento laboratorial, mas parte do seu rico espólio, com diversas joias e peças de ouro, já pode ser apreciado no museu Bruning, na cidade de Lambayeque.

Neste contexto, a lenda da heresia do último rei será talvez a mítica legitimação duma clara conspiração. O modelo económico e social já estava estabilizado, o poder bem repartido entre as casas senhoriais e a ideia dum monarca era, possivelmente, um estorvo a esse status-quo, mais a mais quando este procurava concentrar a autoridade em si mesmo.

Uma aristocracia poderosa deveria contrariar o poder da dinastia de Naymlap.
Na foto: reconstituição da sacerdotisa de Chornancap no museu do sítio

Provavelmente a ocorrência dum fenómeno El Niño foi o pretexto esperado para acusar Faymllap de blasfémia. Podemos até imaginar que, na sua luta, o governante se tenha aliado a uma das casas senhoriais, unindo-se à sua representante, o que estaria na origem do mito da sua profana cópula com um demónio disfarçado de bela mulher.

Fábrica de fazer deuses (museu Bruning em lambayeque).


Ao mesmo tempo, mais a sul, outra cultura, a chimú, atingia o apogeu e mostrava uma clara apetência expansionista. Não é difícil supor que os membros da aristocracia lambayeque se relacionassem com os senhores de Chimú e que estes estivessem ao corrente do conflito de poder lambayecano. Sendo assim, estavam abertas todas as condições para uma negociação, mediante a qual os primeiros se submeteriam aos segundos, sob condição duma grande descentralização de poder que, na prática, consolidaria a aristocracia de Lambayeque, a mesma que terá concluído mais lhe valer um “rei” distante que lhe entregava as rédeas, do que um próximo que as queria para si. O único obstáculo a esse desiderato chamava-se Faymllap e o problema foi, como vimos, fácil de resolver: O mar lhes trouxe a dinastia quando foi necessária, o mar a levou quando já estorvava.

A mensagem da montanha sagrada de Túcume: "Façam as vossas pirâmides, mortais, façam. Vivam e orem nelas, mas nenhum de entre vós é tão poderoso que tão alta residência possa construir". 


Ontem e hoje
Voltando ao início deste texto, hoje em dia na pequena cidade de Túcume cada uma das famílias que aí vive presta um culto especial ao santo que lhe corresponde pelo apelido; uma separação unificada pela fé na Virgen de la Purisima Concepción, com o seu manto triangular que nos recorda uma montanha. Vendo-os, estamos talvez a testemunhar uma sobrevivência dessas 26 pirâmides que repousam perto dali, onde outras tantas famílias senhoriais viveram e praticaram culto, cada uma guardiã da sua divindade familiar, todas unificadas pelo celebração ao deus Yampallec e dispondo-se ao redor duma montanha sagrada, que estava imbuída duma mensagem clara: "Façam as vossas pirâmides, mortais, façam. Vivam, orem e sepultem-se nelas, mas nenhum de entre vós é tão poderoso que tão alta residência possa construir".

Desatento e qual ícaro lambayecano, a tragédia de Faymllap, o último da sua dinastia, terá sido esquecer-se desta autêntica mensagem à humildade dos homens. Vieram depois outros de outras culturas, mas esses já são diferentes capítulos de um mesmo conto.



Luís Novais


quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

COMERÁS COM O TEU SUOR, ou, DE COMO SALVAR O CAPITALISMO DE SI MESMO

Fome e sexo, coação ou incentivo, eis a moeda. Foi coação a escravatura, com o incentivo dum melhor ou pior tratamento, foi coação o feudalismo, com o incentivo de mais ou menos favores do senhor ao servo, é incentivo o dinheiro, com a coação de viver sem ele.



Aquilo de que se trata quando abordamos a questão do dinheiro é de responder a uma antiga questão: “Como obrigar os seres humanos a trabalhar?”

Esta pergunta aparentemente simples foi permanente ao longo da história. Foi a resposta encontrada em cada momento e em cada local que determinou os diferentes modelos económicos, sociais, políticos e até religiosos.

Quem primeiro se preocupou com o assunto foi esse ente abstrato vulgarmente conhecida como “a Natureza”. Para Ela foi tudo muito simples: Deu-nos a fome para que nos esforçássemos a procurar alimento, deu-nos o sexo para que nos déssemos ao trabalho da reprodução, que, se esta fosse 100% mecânica e nada erótica, não haveria quem se desse ao trabalho com o afinco e assiduidade necessários à reprodutividade do ato.

O mais curioso é que, uma vez mais, se justifica a adjetivação de “sábia” com que  nos referimos à Natureza, tão sábia que o ser humano não foi capaz de mais do que copiar as suas estratégias para se dar ao trabalho do trabalho: Ou bem que nos coagiu pela fome para nos fazer comer, ou bem que nos incentivou pelo prazer para que nos multiplicássemos. E é precisamente este duplo mecanismo de coação e incentivo que a história usou para nos obrigar ao esforço.

Foi sempre assim? Aparentemente não. Segundo reza a crónica, Adão vivia muito pacatamente no paraíso que Deus lhe construiu, até que, vendo o irremediável tédio da coisa criada, o Criador resolveu sacar-lhe costela e ofereceu-lhe companheira, não interessa se feia ou bonita porque estes conceitos vivem duma comparação que o noivo estava impossibilitado de fazer.

Fraco remédio: Agora eram dois a levar uma vida de aborrecimento contínuo, o que não é difícil de supor: Que cada um imagine a vida que cada um levaria, se aquelas conversas entre encontros sexuais não fossem entre-cortadas e se limitassem a ser em si mesmas, por muito interessantes que pudessem e possam ser…

Eu sei que, muitas vezes, a raiva do dia-a-dia nos leva a invectivar contra o original casal. Fazemo-lo cada vez que acordamos ressacados ou simplesmente mal dispostos, quando nos apanhamos de volante na mão no meio de garrafal engarrafamento, se temos de aturar um chefe incompetente, um cliente irritante ou um fornecedor que insiste ter prestado um excelente mau serviço. Tudo isto é insuportável e é nessas ocasiões que pensamos como seria bom continuar no bem-bom do paraíso, sem termos de nos preocupar com arreliações tamanhas. Mas caramba! Paremos um bocado para pensar no que foi o início de vida daquele Adão e daquela Eva. Não resulta difícil concluir que bem maior presente foi a condenação do que o tal Éden, o castigo do que a dádiva.

Um bocado de empatia com os nossos avós e perguntemo-nos se, vendo-se em tais circunstâncias, qual de nós não se babaria pelo apetecível fruto proibido. Eu não pensaria duas vezes, nem precisaria da insistência da cobra que, coitada, pelas tontas hesitações de Eva teve de se condenar a uma existência de eterno rastejar, e muito menos precisaria do incentivo de Eva que, para convencer o parceiro e sem contar ainda com a salvadora epidural, gritou de morrer quando pariu Caim, Abel, Sete e outros que pela história não foram rezados.

Consta portanto que Deus é de mau feitio e quando viu a árvore com toda a sua rama e sem qualquer fruto, se enfureceu de soberba, expulsando o casal original daquele para este mundo.

E pronto, fomos postos à porta e à prova, com a roupa do corpo e uma sentença taxativa: “Tu, Eva, vais sofrer para parir e tu, Adão, vais comer com o suor do teu rosto”. Esse terá sido o momento em que Deus inventou também a fome, sem a qual Adão não suaria, e o orgasmo, sem o qual Eva rejeitaria o parceiro sobrepondo a dor do parto a um coito desprazível, não desdenhando que nem sequer o marido pensaria em chegar-se à mulher, lembrando-se das noites mal acordadas que teria de suportar e que, por cada nascimento, passaria a suar não só por si mas por mais um.

E mitos à parte, nós, enquanto espécie, tivemos de encontrar estratégias para nos obrigarmos a trabalhar, sendo que alguns foram mais estrategicamente criativos do que outros e resolveram o seu problema descobrindo a arte de fazer com que outros tivessem de suar mais e alguns ficassem até isentos, o que, já se vê, é blasfemo incumprimento da divina condenação e é talvez por isso que, ao contrário desses, os camelos conseguem passar alegremente pelos buracos das agulhas.

Fome e sexo, coação ou incentivo, eis a moeda. Foi coação a escravatura, com o incentivo dum melhor ou pior tratamento, foi coação o feudalismo, com o incentivo de mais ou menos favores do senhor ao servo, é incentivo o dinheiro, com a coação de viver sem ele.

O capitalismo será então um sistema que estabeleceu o equilíbrio entre uma dose de incentivo, chamado salário ou lucro, e uma dose de coação, chamada poder militar, prisão e, voltamos ao mais básico, fome ou, mitigando, qualidade de vida. O desequilíbrio dum modelo aparentemente tão bem montado dá-se quando já não consegue distribuir o incentivo que o fundamenta e fica apenas com a coação, concretizando essa quimera de que o Dr. Frankenstein foi apenas personagem ficcional duma realidade cada vez mais próxima: A substituição do criador pela criatura, do homem pela máquina, da máquina pelo robot, do robot pela inteligência artificial.

Neste contexto, abre-se um dos mais importantes debates dos nossos dias e, suponho, rios de tinta se gastarão para responder a uma pergunta muito simples: “Como salvar o capitalismo de si mesmo?”



Luís Novais