quinta-feira, 29 de março de 2018

A PESTE BORBÓNICA


A monarquia borbónica está transformada numa peste borbónica, analogia a essa doença que, noutros tempos, vitimou muitos, sem distinção de quem era plebeu, aristocrata… ou rei.

Poucos sabem que o Peru, país onde vivo e amo como segunda pátria, esteve para ser uma monarquia. Chegado aqui desde a Argentina em 1820 e com o apoio do Chile, o “libertador” José de San Martin encontrou um território com tanta diversidade e tanto confronto potencial, que considerou só com um rei se poderia unificar. Foi a contradição entre esta perspectiva e a megalomania dum Simon Bolivar, interessado no nunca alcançado objectivo de ser o George Washington latino-americano, a impedir uma saída que, por esse tempo, se iniciava com êxito no Brasil.

Em 1822, o país já tinha declarado a independência há um ano e continuava sem forma de governo. Foi nessa altura que a “Sociedade Patriótica de Lima” organizou um debate em torno de duas opções: Monarquia ou República?

Destacaram-se as intervenções de Ignacio Moreno e Perez Tudela. O primeiro, partindo de Montesquieu, defendeu que o novel país tinha tantas diferenças, considerou que o povo estava tão mal preparado para o sistema republicano, que só uma monarquia seria viável. O segundo, Perez Tudela, baseando-se em Rousseau, defendeu que, apesar das diferenças, havia algo que unia todos os seres humanos e esse algo era o desejo de ser livre. Concluindo que a liberdade só se realiza planamente numa república, defendeu esta via.

Ambos partiam de ideias incorrectas para justificar um modelo. Nem a monarquia moderna se reveste do autoritarismo que Moreno nela encontrava e desejava, nem, por isso mesmo, é contrária à liberdade com que Moreno a via incompatível.

Mais do que governante, um rei moderno tem razão de ser quando consegue ser a “chave”, nome que se usa também para a peça central dum arco, aquela que sustem as pressões de ambos os lados, mantendo unidas todas as aduelas com que se ergue. Quando o monarca assume esse papel, tem uma razão de ser nos estados modernos, quando não o faz, torna-se na antítese da sua função e fica apenas como mais um factor de desunião.

Para isso, o rei tem muitas vezes de anular a sua liberdade de expressão e de acção. Mas ninguém é obrigado a sê-lo e, lá dizia a epifânia de Afonso IV pela pena de António Ferreira: “Ninguém é menos rei do que quem tem reino”.

Dependendo dos casos, um rei pode prestar grandes serviços à república, entendendo esta como um conjunto de cidadãos e, portanto, de seres humanos livres. Foi graças a um modelo monárquico, que o Brasil conseguiu ter a dimensão que tem, não se desmembrando como aconteceu à restante América latina. Foi também graças a isso, que a sociedade espanhola ultrapassou o trauma da guerra civil, conseguindo encontrar os pontos de união que lhe permitiram mudar de regime pacificamente, preferindo incorporar os problemas inerentes a uma transição consensual, do que aqueles que advêm duma revolução. Não é segredo para ninguém que Juan Carlos de Borbón foi um fiel discípulo de Franco, chegando mesmo a governar ditatorialmente durante a doença do caudillo em 1974. Mas até a esquerda espanhola, até as regiões mais independentistas, viram no rei uma alternativa ao caos. Foi por isso que a constituição de 1978 foi referendada e aprovada sem problemas de maior, método de aprovação que em Portugal já tinha sido usado em 1933.

O problema surge quando o rei não entende o drama de ser rei e quer sê-lo. Quando isso acontece, passa a ser parte do problema e entra no modelo de monarquia pré-contemporânea (ou ainda contemporânea em muitos países), essa que tinha outras justificações e outras legitimidades.

O caso catalão é um grande exemplo de que isso está a acontecer em Espanha. Em vez de ser o garante dessa liberdade de que Rousseau falava, perdendo-se como última instância, deixando de ser a tal “chave” que consegue suster as pressões de ambos os lados do arco, Filipe de Borbón é, hoje, um líder de facção que atua contra a vontade, ou maioritária ou de grande parte dum povo. É preciso não entender o processo histórico espanhol iniciado em 1975, para nos agarrarmos à letra duma constituição, que pode ter sentido num contexto, mas que hoje já não tem e relativamente à qual não se mostra a mínima abertura reformista.

O historiador Valério Arcary escreveu que as revoluções são “…uma das formas a que as sociedades contemporâneas recorreram para resolver tarefas históricas que permaneceram pendentes”. Segundo ele, uma revolução é uma estratégia de mudança excepcional e que raramente é usada porque, para que ocorra,  “…é preciso que todas as outras vias tenham sido antes bloqueadas e esgotadas”[1]

A perseguição desmedida que o reino de Espanha está a fazer aos independentistas; a incapacidade para negociar e para encontrar alternativas que, não necessariamente, teriam de passar pela independência, mas que teriam que aceitá-la como possível ponto de chegada; a paranóia de Rajoy suportada em Filipe; a total inflexibilidade contra o desejo (maioritário ou duma grande parte) dum povo… Tudo, mas absolutamente tudo, é prenúncio de tragédia, porque anuncia que todas as vias estão “bloqueadas e esgotadas”.

A monarquia borbónica está transformada numa peste borbónica, analogia a essa doença que, noutros tempos, vitimou muitos, sem distinção de quem era plebeu, aristocrata… ou rei.



Luís Novais




[1] Arcary, Valério, As Esquinas Perigosas da História. Situações Revolucionárias em Perspectiva Marxista, São Paulo, Xamã, 2004, p. 27.


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